Lembrar do passado sempre gera certa nostalgia. Mas é muito gostoso quando as lembranças trazem aquele sorriso espontâneo no rosto e nos fazem perceber que tudo o que passamos e todas as pessoas que passaram por nossas vidas contribuíram, de muitas formas, para sermos quem somos hoje.
Às vezes fico horas de olhos fechados tentando encontrar o sono perdido e nesses momentos tento incansavelmente descobrir qual é minha primeira lembrança. Em geral, os sonhos acabam me abraçando e os olhos fechados tornam-se a abrir somente no dia seguinte. Mas às vezes eu recordo pequenos fragmentos, mesmo não sabendo ao certo se lembro mesmo deles ou se são apenas aquelas imagens que perseguem a mente de tanto serem vistas em fotografias já desbotadas, tiradas em dias sobre os quais apenas os outros contam.
Se fizer bastante força, consigo lembrar de pequenos detalhes, como o grito de "me espera" ao pai e à mãe na hora de dormir, ou os desenhos com giz na calçada de casa, embalados por uma canção inventada implorando para que o sol não cedesse lugar às nuvens nos dias em que ficava de molho na velha piscina de plástico. Até consigo lembrar dos primeiros versos, cantados desafinadamente aos gritos:
"Sol, fica aqui só mais um pouquinho, que a noite já vai chegar..."
Lembro da visita à fazenda de jabuticabas ali perto de Goiânia e da estradinha que pegávamos para chegar em casa - hoje uma larga avenida asfaltada e cheia de casas e movimento. Lembro dos nomes dos coleguinhas do pré-escolar e até consigo ver meus passos voltando da escola debaixo da sombrinha da mãe, andando pelas ruas ainda de chão batido do condomínio onde morava. Lembro de caminhar em fila no dia em que quebrei o braço, lá pelos cinco anos, e lembro dos Beatles cantando no toca-fitas do meu pai, enquanto ele montava suas maravilhosas máquinas voadoras.
Lembro de amassar carrapatos com pesos de chumbo. Lembro de alimentar formigas com açúcar e de montar corridas entre bichos de goiaba. Lembro de passar os Natais em família. Lembro do trajeto de todos os dias a caminho da escola. Lembro da fascinação por subir em árvores. Mas ainda mais nova, creio, lembro de rabiscar os cartões de computadores que meu pai trazia para casa do trabalho, fingindo ser diretora de uma empresa muito importante - a Jungis Barrida.
É, meus caros... eu era criativa. Tão criativa que cheguei a inventar algumas regras gramaticais complexas o suficiente para, hoje em dia, ter dificuldade em entender o que poderiam significar para uma criança. Criei novas classes morfológicas - os gramafos e o alamimissim. E ensinava todas as suas regras para alunos imaginários. Também adorava passar horas brincando com velhos talões de cheque e panfletos bancários. Sempre que ia ao banco com a mãe ou o pai, saía catando toda a papelada informativa sobre investimentos, cdb, rdb e coisas que os bancários devem conhecer.
As bonecas não eram minha preferência - só bem mais tarde, quando descobri as Barbies. Mas, quando criança pequena, gostava mesmo era dos carrinhos. Papai montava um autorama gigantesco no corredor lateral lá de casa - e lá íamos nós e os vizinhos com nossas lotus, ferraris ou mclarens competir por horas a fio. Gostava dos bichos de pelúcia Anselmo e Rodolfo (era isso mesmo?) e adorava o João Neme. Tinha também a Matilde. Não lembro muito bem dela, uma boneca de pano meio feinha - e talvez por isso tinha tanta dó dela que nunca consegui livrar-me de sua companhia.
Aliás, é interessante como é mais fácil lembrar das sensações e impressões da infância do que das imagens propriamente ditas. Recordo da sensação de dúvida se devia correr para os braços da mãe ou do pai, que me torturavam chamando-me os dois ao mesmo tempo, cada um de um lado da sala.
"Vem com a mamãe / Vem com o papai". Tortura, né? Por outro lado, há imagens soltas, como a velha cadeira de vime que ficava no terraço de casa, o chapelão mexicano que meus pais ganharam ou o sapo de pano que minha avó me deu (acho!) e que eu fazia de travesseiro.
Anos mais tarde, lembro que achava o máximo brincar na rua com a molecada, correr no pique-pega ou no pique-esconde, pular mamãezinha da rua ou aventurar-me na bandeirinha. E aqui faço um parêntese: hoje em dia a criançada não sabe o que é infância verdadeiramente feliz. Da escola pro inglês, de lá pra aula de música ou pro balé e, em casa, videogame. Tá, eu também gosto de videogame, mas em nenhum momento essa fase foi melhor do que a das brincadeiras ao ar livre. Os dias de videogame mesclaram-se como uma lembrança única, como se fossem apenas um dia. Por causa da repetição, sabem? O cérebro não armazena as pequenas diferenças das coisas que são feitas todos os dias.
Quando criança, também gostava muito de brincar sozinha. Mas foi dessa época que, entre fases "de mal" e "de bem", veio uma das minhas amizades mais sólidas e sinceras. Depois veio a fase dos barzinhos, das confidências trocadas em bilhetinhos. Veio o vestibular, a faculdade e a descoberta que o caminho não era bem aquele. Veio a Computação e alguns bons amigos. Veio o Jornalismo, com algumas boas amigas e a profissão que elegi para seguir.
E o tempo, que começou engatinhando, passou a andar cada vez mais rápido e hoje corre desenfreado. Já não vejo todos os dias as pessoas que me fizeram ser o que sou; já não encontro os mesmos amigos que fizeram parte de tantas fases da minha vida; já não sou mais criança. Mas olho para trás com orgulho. Com saudades. Hoje, minha porção infantil contenta-se com quebras-cabeça e recordações. E ela continua aqui, só esperando para alguém a lembrar como é que se faz uma cantiga de roda ou se pula amarelinha.
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"É bom olhar pra trás e admirar a vida que soubemos fazer
É bom olhar pra frente, é bom, nunca é igual,
Olhar, beijar, ouvir, cantar um novo dia nascendo"
(Nando Reis)